Os carvoeiros serranos, da serra da Lousã, e a frase “Já deu meio-dia em S. Paulo?”
«Na Louzã, chamavam-lhe “os serranos”.
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No meu tempo de rapazinho, os serranos eram personagens de anecdota camillesca, infinitamente boçaes, que inspiravam todos os escarneos. Como viviam do carvão que faziam na montanha, em grandes covas, para o trazer aos freguezes, carregando os saccos atravessados sobre os hombros, appareciam á semana na villa sempre enfarruscados e com um aspecto mais de diabos que de "almas christās". (…) Aos domingos, vinham á missa e ao mercado; e então a figura se lhes convertia de sinistra em caricatural. Deixando de semear o terror, passavam a provocar a surriada.
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À tarde, quando se retiravam, sempre alguns garotos lhes iam no encalço, com assobios, apupos estridentes. Havia uma pergunta que ao extremo os enraivecia: "Já deu meio dia em S. Paulo"? Para se reproduzir a sua resposta, é necessario usar dum euphemismo: "Na cabeça do teu pae bateu o badalo"! E ai do rapazola que assim ousasse interpela-os de perto ou não tivesse boas pernas para fugir... O serrano corria atrás delle, de varapau alçado e, se o varapau chegasse a descer, era, pelo menos, um hombro deitado abaixo.
(…)
Nem a pergunta "se já deu meio dia em S. Paulo" constitue insulto ou caçoada para pessoa alguma, nem na serra existiu jámais povoado com aquella celeste denominação, nem ainda em taes paragens se conheceu torre ou relogio cujas horas chegassem aos ouvidos do povo. Devia, portanto, haver ali uma historia mais ou menos depreciativa para um avoengo dos serranos e que estes, ignorando-a embora, continuavam a considerar extremamente injuriosa... Innumeras vezes interroguei os velhos, os eruditos da terra, nunca encontrei quem a tal respeito me pudesse esclarecer.»
in LUSO, João (1932) Viajar pp. 85-88
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«Frase proverbial – locução (…) os carvoeiros (que eram arreliados pela pergunta, atualmente sem significado: se já deu meio-dia em S. Paulo, isto é, na igreja de São Paulo)»
J. Leite de Vasconcelos (1988) Etnografia Portuguesa – Vol. X, p.607
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«Em Lisboa diz-se com tom ofensivo e interrogativo: “Já deu meio dia em S. Paulo?” o que parece explicar-se por este dito de Garcia da Orta: «Ha umas mentiras tão grossas, que não é bem, nem merecem ser repreendidas, senão deixadas passar ávante, até que dêem doze badaladas como o relogio de meio dia.»
Teófilo Braga (1885) O povo português nos seus costumes, crenças e tradições – Vol. II – p. 350
Garcia da Horta in Coloquio dos simples e das drogas
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«S. Paulo [em Lisboa]. Não é do principio da monarchia esta parochia; (…)
A egreja nova foi erigida a expensas do povo, que povo, que por esse motivo obteve o privilegio de ser a sua confraria do Santissimo Sacramento quem apresentava ali os parochos. (…)
A nova egreja de S. Paulo abriu-se ao culto em 1512, (…)
Uma nota curiosa que toda a rapaziada de Lisboa conhece, mas a que não podemos encontrar explicação.
Os carvoeiros tornam-se furiosos, quando lhes perguntam - se ja deu meio-dia em S. Paulo.
Ha annos deu-se mesmo um lamentavel acontecimento por esse motivo. Um rapazito atrevido fez a pergunta a certo carvoeiro, e este, perdendo a cabeça, atirou-lhe com uma acha de a lenha que acertando na cabeça do desgraçado pequeno o matou instantaneamente.
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A gente de hoje passa ali indifferentemente, ignorando a tradição.»
Lisboa antiga e Lisboa moderna. Elementos
Lisboa: Typ. Gazeta de Lisboa, 1900 – p. 124
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Imagem: A Carvoeira
Fot. Dr. António Perdigão
Reprod. F. Ferreira (B. M. Lousã)
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