Nos primeiros 15 dias de agosto de 2003 arderam cerca
de 300 mil hectares no nosso País. Os fortes incêndios de Oleiros, Sertã e
Aljezur fizeram as manchetes dos jornais (e da VISÃO) e os temas são sempre os
mesmos: a floresta de eucaliptos e pinheiros, as falhas da proteção civil, a
falta de condições de trabalho dos nossos bombeiros. Passaram 14 anos e
continuamos a falar do mesmo. Por isso esta entrevista que, na altura, fizemos
a Gonçalo Ribeiro Telles, arquiteto paisagista e “pai” do ecologismo português,
não perdeu um pingo de atualidade. Vale a pena voltar a ler as suas palavras e
perceber como nada aprendemos com a História, nenhuma lição retiramos dos
nossos erros, continuando ano após ano na permissividade da celebração do
eucaliptal.
VISÃO: Quais são as causas desta calamidade?
GONÇALO RIBEIRO TELLES: A grande causa é um mau
ordenamento do território, ou seja, a florestação extensiva com pinheiros e
eucaliptos, de madeira para as celuloses e para a construção civil. O problema
foi uma má ideia para o País, a de que Portugal é um país florestal. Lançou-se
a ideia de que, tirando 12% de solos férteis, tudo o resto só tem
possibilidades económicas em termos de povoamentos florestais industriais.
V: De onde vem essa ideia?
GRT: É uma ideia antiga que começou nos anos 30 com a
destruição, também por uma floresta extensiva, das comunidades de montanha do
Norte de Portugal, que tinham a sua economia baseada na pecuária. As
dificuldades por que passava a agricultura deram origem a que se quisesse
transformar grandes áreas do País já são 36% em florestas industriais. Esta
campanha transformou a silvicultura, que era a profissão básica, numa profissão
de florestal, para dar resposta aos grandes interesses económicos. Houve ainda
outra campanha, a do trigo, em que se organizou o País em função desta cultura,
que tinha por base o mito da independência de Portugal em pão. Além das terras
para o trigo, tudo o resto, num sistema de agricultura economicista, tem que
ser floresta, produção de madeira. O resultado está à vista.
V: Passámos então a ser um País florestal.
GRT: Os romanos dividiam o território em três áreas,
além da urbe: o ager, que era o campo cultivado intensamente; o saltus, a
pastagem, a agricultura menos intensiva; e a silva, a mata de produção de madeira
e de protecção. Todo esse ordenamento foi transformado, acabou-se com a
silvicultura e começou o culto da floresta, que não temos. Se formos ao campo
perguntar onde fica a floresta, eles só conhecem a do Capuchinho Vermelho,
porque o que têm na sua terra são matas, matos, etc. No século XIX, o pinheiro-bravo
veio para responder às necessidades do caminho-de-ferro que estava em
lançamento. Mais tarde é que vem a resina, a indústria da madeira e a celulose.
O pior é que se transformou o País num território despovoado e que, dadas as
características mediterrânicas, arde com as trovoadas secas.
V: Como deve ser reordenado o território?
GRT: O País está completamente desordenado. Por um
lado, uma política agrícola que não considera o mosaico mediterrânico, com
agricultura, pecuária, regadio e horticultura, os matos, as matas, todo um
mosaico interligado e ordenado. Em Mação, por exemplo, aquela população vivia
tradicionalmente da agricultura que fazia nos vales e nas naves.
E na serra
existiam os matos pastados pelas cabras, pelos bovinos. Dos matos retirava-se o
mel, a aguardente de medronho, a caça e as aromáticas.
A França, nas zonas de mato, tem uma política de
aromáticas de abastecimento da indústria de perfumes. A questão, hoje, é criar
uma mata que produza madeira, mas que se integre nos agro-sistemas, uma
paisagem sustentada, polivalente e nunca repetir, como já querem, a plantação
de eucaliptos e de pinhal. As populações estão fartas disso e devem ser
chamadas a depor. E tem que haver duas intenções ecológicas fundamentais: a
circulação da água e a circulação de matéria orgânica, aproveitando-a para
melhorar as capacidades de retenção da água do solo.
V: A excessiva divisão do território (em meio milhão
de proprietários) dificulta as limpezas florestais?
GRT: A limpeza da floresta é um mito. O que se limpa
na floresta, a matéria orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se
fora, queima-se? Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura
em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era
mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade
de retenção da água.
Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num
espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais
seco fica o ambiente.
V: Se as matas estivessem bem limpas ardiam na mesma?
GRT: Ardiam na mesma e a capacidade de retenção da
água não se dava, passava a haver um sistema torrencial. A limpeza tem que ser
entendida como uma operação agrícola. Mas esta floresta monocultural de
resinosas e eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para
arder. Aquela floresta vive para não ter gente. Se houvesse lá mais gente
aquilo não ardia assim.
V: Defende uma mata com que tipo de madeiras?
GRT: Madeiras para celulose é difícil porque temos
agora uma forte concorrência no resto do mundo. Os eucaliptais, para serem mais
rentáveis, só poderiam sê-lo no Minho que é onde chove mais de 800 ml ao ano. O
eucalipto precisa de muita água e Portugal não pode concorrer com o Brasil e a
África em termos de custo. Só se transformarmos o Minho num eucaliptal. Pode-se
optar pelas madeiras de qualidade da cultura mediterrânica como todos os
carvalhos, o sobreiro, a azinheira e pinhais criteriosamente distribuídos.
V: Não são tão rentáveis…
GRT: O carvalho, por exemplo, acompanha toda uma
panóplia de rendimento como a cortiça, a pecuária, a produção do mel, das
aromáticas, a caça.
V: Há uma visão limitada do que pode ser rentável na
floresta?
GRT: É muito bom para as celuloses e muito mau para as
populações e para o País, que está devastado. O mundo rural foi considerado
obsoleto, como qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi
a política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o aumento
dos subúrbios, dos bairros de lata, da emigração. Trouxe alguma coisa melhor
para a província? Não. Apenas um grande negócio para as celuloses e para os
madeireiros.
V: As populações estão alertadas para essa
multiplicidade de culturas?
GRT: Completamente alertadas; quem parece que não está
são os políticos e os técnicos. Porque se perderam numa floresta de «números».
Quem conhece as estatísticas diz que somos o terceiro país da Europa em número
absoluto de tratores, só ultrapassados pela Alemanha e pela França. Somos um
país de tratores porque os subsídios dão para isso, porque interessa à
importação dessa maquinaria toda. As pessoas foram levadas a investimentos, em
nome do progresso, que não tinham qualquer racionalidade.
V: No caso de se aumentarem as áreas agrícolas, temos
agricultores para tratar delas?
GRT: Temos. Estão desviados, foram convencidos de que
eram uns labregos. Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo
por base a ideia de que era inferior ao mundo urbano. Despovoámos os campos e
essa gente toda veio para a cidade. Hoje, enfrenta o desemprego. Esqueceram-se
que o homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas, da
urbana e da rural. Hoje, 30% das pessoas que praticam a agricultura económica
na Europa não são agricultores. É gente que vive na cidade, tem lá o seu
escritório e tem uma herdade no campo onde vai aos fins-de-semana. A expansão
urbana aumenta e não podemos viver sem a agricultura senão morremos à fome.
V: Que pode fazer o Estado, uma vez que 84% da nossa
floresta está nas mãos dos proprietários?
GRT: Pode fazer planos integrados de ordenamento da
paisagem. O Estado não domina totalmente a expansão urbana quando quer, não faz
planos gerais de urbanização? Não se devia poder plantar o que se quer porque
também não se pode construir o que se quer. Constrói-se mal porque, às vezes, o
Estado adormece. Faltam planos gerais de ordenamento de paisagem, que a atual
legislação não contempla, apesar de já ter instituído a Estrutura Ecológica
Municipal através do Decreto-Lei 380/99. A Lei de Bases do Ambiente tem os
conceitos e os princípios para um plano de ordenamento de paisagem, está lá
tudo escrito, mas nunca foram regulamentados.
V: A atual legislação favorece as monoculturas?
GRT: Favorece porque a chamada «modernização» da
agricultura é um escândalo de incompetência. As universidades de Agronomia em
Portugal tiveram um período de grande pujança intelectual no fim do século XIX
e no princípio do século XX. Agora, parece terem-se rendido ao economicismo.
V: Deve o Estado apoiar com subsídios e benefícios fiscais?
GRT: Com certeza. O proprietário está com a corda na
garganta, faz aquilo que lhe der dinheiro já para o ano. Por isso, têm que se
estabelecer limites e normas a sistemas, não a culturas, mas sem tirar às
pessoas a liberdade de correr riscos.
V: E promover o associativismo florestal, como em
Espanha, por exemplo?
GRT: Abrimos um bom caminho com as «comunidades
urbanas» que estão na forja, pequenas áreas metropolitanas de freguesias e
aldeias, acho muito bem. Estamos numa cultura mediterrânica e não se pode
traduzir o desenvolvimento em unidades economicistas de produção em grande
volume de dois ou três produtos. É da polivalência, da multiplicidade de produtos
e da harmonia da paisagem que resulta a possibilidade de ter uma população
instalada em condições de dignidade.
Essas comunidades é que deverão fazer a síntese de
todos os interesses. Porque quando começamos a destacar os interesses por
sector, a visão sistémica desaparece e os interesses da comunidade passam para
empresas que ultrapassam as suas fronteiras comprometendo a sustentabilidade da
região.
Não defendo que haja um sector agrícola e um sector
florestal, para mim é exatamente o mesmo: a agricultura completa a floresta e a
floresta completa a agricultura.
V: O Partido Socialista voltou a falar da
regionalização como forma mais eficaz de ordenar o território. Concorda?
GRT: Defendi uma regionalização há muito tempo, que
deu origem a um documento de que os grandes partidos fizeram muita troça.
Dividia o País em cerca de 30 regiões naturais, áreas de paisagem ordenada, que
estavam já organizadas histórica e geograficamente.
São as terras de Basto, as terras de Santa Maria, as
terras de Sousa, a Bord’água do Tejo, etc. O País é isso e não é outra coisa.
Esta regionalização podia contribuir para a efetivação dos planos de ordenação
da paisagem, com uma participação democrática das respetivas populações.
V: O Governo acordou tarde para a calamidade dos incêndios?
GRT: Que podia o Governo fazer? O mal vem de longe.
Mas não estou seguro de que se vá enveredar agora pelo caminho certo. Já estão
a dizer que querem reflorestar tudo como estava. Fico horrorizado quando ouço
isso. Significa que querem voltar aos pinheiros e aos eucaliptos. Perguntem às
vítimas dos incêndios que ficaram sem as casas se querem outra vez pinheiros à
porta. Destruíram as hortas… Porque ardem as casas? Porque o pinheiro está no
quintal.
V: Olhando para o futuro, os incêndios podem
constituir uma oportunidade para se reorganizar o território?
GRT: Também o terramoto permitiu que o Manuel da Maia,
a mando do Marquês de Pombal, fizesse a Baixa lisboeta. Não desejo um
terramoto, mas não percam esta oportunidade. O futuro do País e da sua
identidade cultural e independência está em causa.
Fontes/Links:
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