Searas de paz e pão para a boca




Manuel Louzã Henriques partiu em 29 de julho de 2019.

6-ago-2022

Para assinalar uma ausência física de três anos, erguendo bem alto o seu exemplo e a obra que nos deixou, com especial destaque para a cultura popular da Serra da Lousã, o jornal Trevim reeditou no passado dia 30 um artigo da minha autoria, que abaixo reproduzo, divulgado este ano pela "newsletter" conjunta do Museu Municipal Álvaro Viana de Lemos e do Museu Etnográfico Louzã Henriques:

«Alertava Louzã Henriques para o dever de sabermos preservar as terras mais férteis, vulgo Reserva Agrícola Nacional, designadamente os solos de aluvião, para que às gerações vindouras não viesse um dia a faltar o pão.

Nas centenas de diálogos, sempre interessantes, que ao longo de décadas tive o privilégio de manter com o patrono do Museu Etnográfico da Lousã, ele insistia em valorizar os terrenos com provas dadas na produção de cereais, hortícolas e outros alimentos básicos.

Nos terraços fluviais que resultaram da evolução dos rios Arouce e Ceira, no vale da Lousã, ao longo de milhões de anos, situam-se terrenos agrícolas da mais elevada qualidade.

O mesmo acontece junto às linhas de água menores que descem da Serra da Lousã, como as ribeiras da Fórnea e da Sarnadinha, entre outras.

Nos socalcos roubados à fraga, os serranos cuidavam cada pé de milho como se fosse um filho, testemunhava Manuel Louzã Henriques com a sua proverbial ternura, nas muitas "conversas vadias" que protagonizou com inigualável brilho em diferentes palcos da vida.

Pão promissor à mesa do pobre, a batata do Novo Mundo foi substituindo a castanha, sobretudo a partir do século XIX, após a doença da tinta ter dizimado boa parte dos soutos da Serra da Lousã.

O fruto, ainda assim, continuou a ter peso na alimentação dos serranos, até ao momento em que as últimas famílias abalaram para Brasis e Américas.

Para aguentar o frio do inverno, nada melhor do que uma sopa à base de castanhas piladas, secas no caniço, acima das morcelas e chouriças que pendiam do fumeiro.

Mas elas não podem ouvir o cuco! O mesmo é dizer que ganham bicho com a chegada da primavera.

Nas lojas de algumas casas desabitadas, ainda há poucos anos podíamos encontrar os velhos molhos de palha de centeio com que os emigrantes deveriam renovar as enxergas.

Ou as pontas de milheiro nas manjedouras, destinadas a reforçar a refeição das cabras nos dias de neve e temporal em que os montanheses não podiam sair com o gado.

Milho e centeio eram os grãos com que faziam o pão abençoado de cada dia.

As coleções de cangas, arados e carros de bois com que Louzã presenteia hoje os visitantes do Museu Etnográfico ajudam a explicar uma realidade próxima de nós, uma cultura campesina ancestral que ainda dominou o século XX praticamente até ao fim.

Dezenas de moinhos funcionavam junto às ribeiras, um pouco por todo o concelho da Lousã e municípios vizinhos.

Em muitas casas, não faltavam também a batata, o feijão e a castanha.

A abastança – ou a miséria! – das famílias variava em função da terra que possuíam, dos dias ou meios dias de sementeira de milho, o milho grosso de origem ameríndia, mas só quando a lavoura era feita com bois.

Onde a propriedade era estreita, muito inclinada e com apenas uma ligeira camada de terra sobre a rocha, todo o trabalho tinha de ser efetuado à força de braços.

As famílias mais ricas, digamos, dispunham de abundantes caudais de água para regar os frondosos campos de milho nos lugares agropastoris.

Pelo número de alqueires de cereal acumulado, avaliávamos se uma casa seria pelo menos remediada, ao ponto de conseguir pagar uma viagem de barco para o Brasil, em meados do século passado, sem penhoras nem empréstimos.

Caso contrário, era preciso vir cá abaixo e bater à porta de algum cachaçudo da Lousã, onde então imperavam os temíveis Tribunal, Câmara, Finanças e GNR.

– O serrano detesta a vila, mas precisa de um compadre! – justificava Louzã, com o sorriso dos seus irmãos das alturas.

Ainda em alqueires de milho, na serra e no vale, pagavam cortes de cabelo e barbas pelo São Miguel, em setembro, logo que os grãos reluzentes adornavam eiras e logradouros.

Etnólogo e homem de paz, Louzã Henriques não era apenas um excelente contador de histórias.

Era um intelectual que defendia a necessidade de proteger as terras férteis, incluindo os leitos de cheia.

Não fossem voltar os tempos negros da fome, da peste e da guerra. »

  

(*) Membro da direção da Liga de Amigos do Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques 

Nota - A foto, em que estou com Louzã Henriques, foi obtida pela amiga Luísa Sales em 24 de novembro de 2018, durante um almoço que assinalou os 25 anos da campanha "Ser solidário", em defesa da liberdade de informação, uma iniciativa dos fundadores do Trevim, jornal da Lousã há quase 55 anos, era eu então seu diretor e a braços com dois processos judiciais que viríamos a ganhar em toda a linha.

 

Fonte:

Facebook - Casimiro Soares Simões shared a post.

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