Ingrid
Márquez 30 de Outubro de 2000, 0:00
Talasnal,
Catarredor, Vaqueirinho... São nove as aldeias perdidas na
Serra da Lousã, perto de mil hectares de vales, rios e montanhas a que muitos
não hesitam em chamar "paraíso". Um paraíso quase despovoado, apenas
algumas centenas de pastores, hippies, freaks, reformados, naturalistas ou
burgueses endinheirados. Portugueses e estrangeiros, com algo em comum: o
desejo de viver em plena natureza. Bem-vindos ao paraíso (um sítio onde,
naturalmente, se dispensam os apelidos).
É apenas há um ano que Lita vive numa pequena casa em Catarredor: "Vim para recuperar de uma doença e começar do zero." No seu pequeno habitáculo de pedra e telhas não tem água corrente, nem luz, embora isso pareça não a incomodar. Lava a roupa no tanque e alumia-se à luz de velas. O dinheiro de que precisa ganha-o a vender objectos em pele, que ela própria fabrica, principalmente por encomenda.
A Lita
parece nada lhe faltar, porque agora tem saúde. Seja por terem saúde ou outra coisa
qualquer, nada parece faltar às poucas centenas de habitantes das nove aldeias
espalhadas pelas encostas serranas da Lousã, as que estão mencionadas no guia
de percursos da serra que pode obter-se no posto de turismo do edifício da
câmara e que convida à descoberta de acessos, pistas e caminhos. E, no entanto,
quando se vê como vivem, poderia pensar-se que lhes falta tudo.
Um engano:
afinal, estão ali exactamente por desejarem viver em plena natureza, longe da
civilização. E estão efectivamente muito longe.
Quando
chegou, há 15 anos, Beatriz teve de aprender a cultivar a horta e a tratar dos
animais; agora, além disso, é a dona do único bar da aldeia: "trabalho
muito e ganho pouco dinheiro, mas é uma experiência gratificante".
Nascida na
Alemanha, Beatriz teve em casa os três filhos: agora, são eles a nova geração
de serranos.
Não existe
nenhum padrão, embora alguns habitantes da Lousã insistam em pensar que são
todos “hippies de cabelo comprido”.
Foi há
poucos anos que Carlos comprou umas ruínas onde a sua casa foi construída.
Agora vive tranquilo e partilha a refeição com quem se acerca - há sempre para
mais um porque "a família é muito grande".
Leva uma
vida simples, trabalhando as pedras para novas construções na serra, um ofício
em fase de extinção, embora a câmara só permita que se façam em pedra.
É da
segunda metade do século XVI a primeira referência ao facto de a serra ser
habitada. Provavelmente, os primeiros habitantes foram exploradores de carvão e
pastores à procura de terras inexploradas, afirma Paulo Carvalho, professor da
Universidade de Coimbra. É também sensivelmente a partir dessa altura que os
serranos procuram trabalhos temporários no Alentejo e em Espanha para cobrir as
suas necessidades monetárias, e numa segunda fase as saídas passam a ser
permanentes em direcção a Lisboa, Brasil ou Estados Unidos, acrescenta o
professor.
A partir
de 1940, o processo de emigração foi acelerado por causa de uma reflorestação
incentivada pelo Estado devido à degradação dos solos, que deixou as aldeias
sem baldios para o pastoreio, actividade principal dos habitantes.
O fecho
das escolas e uma dependência cada vez maior da civilização ajudou a que, pouco
a pouco, estes lugares se fossem transformando em ruínas cheias de histórias e
recordações.
Foi assim
que Kerstine e o marido, alemães, encontraram no Inverno de 1989 a aldeia de Sardeira.
Ficaram maravilhados e decidiram instalar-se para iniciar um projecto de
recuperação da aldeia apenas apoiado com a organização de uns campos de
trabalho do Instituto Português da Juventude.
Actualmente,
a Sardeira é um lugar de sonho envolto em hortênsias de azul intenso. Foi aí
que Kerstine escolheu formar a sua família. Declara que não gosta das visitas
dos jornalistas, porque não gosta de se sentir "um bicho raro", mas
vai sorrindo e amavelmente mostra a sua oficina, onde fabrica fantoches em
madeira que depois vende nas feiras de artesanato. Kerstine foge ao estereotipo
da turista alemã: é que, além de não receber qualquer subsídio, fala em
português perfeito.
Na aldeia
mais afastada encontra-se "O fim do mundo", o café de Pedro. Vaqueirinho
era uma aldeia totalmente desabitada até que Pedro chegou de Lisboa, há 19
anos. Enquanto prepara o pequeno-almoço, explica que um ano depois de se
instalar já lá viviam oito pessoas e que há poucos anos toda a aldeia chegou a
estar cheia de habitantes.
"Foram
chegando e foram indo, nem todos percebem que aqui somos pobres mas
livres." Agora só há quatro habitantes. Pedro e a filha Diana, Marta e
Dieter. Diana tem 14 anos e é a primeira a subir à carrinha dos bombeiros que
leva todos os jovens da serra à escola na Lousã. Para já, não tenciona ir viver
longe daqui, embora saiba que, se quiser ir estudar para a universidade, vai
ter que partir. Mas nada parece preocupá-la, sentada tranquilamente na borda do
tanque, com os pés dentro de água. Ainda falta muito tempo e aqui a pressa é
coisa que não existe.
No alto de
uma encosta fica a aldeia de Talasnal, onde ainda vivem a Maria Helena e
Manuel, um casal que nunca abandonou a aldeia.
Tiveram
tempos muito difíceis, em especial quando a escola fechou, pois durante dois
anos os filhos tiveram de ir a pé para a escola da Lousã, com chuva ou mau
tempo. Durante alguns anos tiveram que viver e trabalhar na vila. Agora que os
dois recebem uma reforma, instalaram-se definitivamente na aldeia -
"coisas do meu marido, porque eu não me importava de estar na Lousã, ao pé
da minha filha”, comenta Helena.
Recordam
quando a aldeia estava cheia de vida, quando "se tinha pouco e se
trabalhava muito, mas as pessoas eram felizes, não é como agora, mesmo com tudo
o que se tem e nem assim". Na aldeia também existem várias casas para
grupos e por isso está quase sempre animada com jovens que vêm passar uns dias
à serra.
No Chiqueiro, uma das aldeias com melhor panorama, por estar num ponto alto, encontram-se a família da D. Esperança e a viúva do ex-guarda florestal, Maria Celeste. Esperança e o marido ocupam-se da criação de cabritos que depois vendem ali mesmo. Enquanto ela limpa os currais e lava a roupa no tanque, explica que todas as casas da aldeia já foram vendidas, e agora os proprietários costumam vir passar férias ou fins-de-semana. Nesta aldeia, já não se vendem casas de pedra por menos de cinco mil contos!
Num mapa
mais ou menos pormenorizado da zona podemos localizar as aldeias de Silveira
de Baixo e Silveira de Cima. Estas aldeias estão totalmente em
ruínas e o seu acesso não é muito recomendável para um automóvel comum. As
Silveiras são propriedade da ARCIL, Associação de Recuperação dos Cidadãos
Inadaptados da Lousã, uma instituição privada de reabilitação, formação e
integração para pessoas com deficiências, que pretende iniciar em breve um
projecto de recuperação com fins turísticos.
Existem
ainda as aldeias de Franco de Baixo e Franco de Cima, que só
aparecem assinaladas em cartas militares e cujos caminhos e pistas são quase um
mistério. O que é, para quem queira, uma garantia de absoluta tranquilidade, de
natureza em estado puro.
Link:
https://www.publico.pt/2000/10/30/jornal/longe-muito-longe-da-civilizacao-150654
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