As aldeias serranas da Serra da Lousã


Leituras inextinguíveis (50): As aldeias serranas da Serra da Lousã 

por Mário Beja Santos 7 de Agosto, 2022


Nos últimos dias do ano de 1995, pus-me ao caminho para ir conhecer Coja e Avô, e respetivos arrabaldes, fui batendo à porta de pequenos hotéis e pensões das vilas, tudo indisponível, anoitecia quando cheguei à Lousã, consegui dormida na pensão residencial Martinho, amesendei-me com fartura com uma saborosa chanfana, umas batatas cozidas de estalo. Findava o ano e percorreram-se as ruas da Lousã, doía um tanto aquelas fábricas fechadas, um mundo têxtil que já fazia parte do passado, mais adiante fiquei intrigado com o nome Cacilhas, começou a subida para a Serra da Lousã, primeira paragem no miradouro, estrada cada vez mais íngreme, paragem nas Hortas, natureza luxuriante, uma bela casa que terá sido das Matas Nacionais, nova subida, já com vertente a pique desaconselhável para quem tem vertigens, e depois uma estrada a indicar Casal Novo e Talasnal. Iniciava-se um idílio que se prolongou por bons anos, diferentes férias com família e amigos, guardo uma saudade imensa desses tempos em que descíamos pelas faldas da serra até chegar à piscina na Lousã, junto do castelinho, com a Senhora da Piedade a vigiar. Anos depois tive acesso a um livro que guardo religiosamente, Terra que já foi Terra, análise sociológica de 9 lugares agro-pastoris da Serra da Lousã, por Paulo Monteiro, Edições Salamandra, 1985.


O autor embrenhou-se neste mundo agro-pastoril quando começou a abrir maços das velhas cartas encontradas na Serra da Lousã, correspondência de uma família, período temporal entre 1890 até 1950, o marido emigrado na América, quando regressou trazia atadas com cordéis as cartas da mulher. Assim se desvelava um mundo de camponeses a viver em autossubsistência, ou quase, prestando serviços como carvoeiros, vivendo em 9 lugares, religiosamente agrupados por 3 (em cada um deles um templo religioso), dando pelos nomes: Silveira de Cima, Silveira de Baixo e Cerdeira; Candal, Vaqueirinho e Catarredor; Chiqueiro, Casal Novo e Talasnal. Unidos pela festa de Santo António da Neve, aqui também se juntavam povos serranos de Serpins, Coentral e Castanheira de Pera. Os bailes eram a festa, mas havia gente turbulenta, à menor sarrafusca puxavam pelo varapau.


Paulo Monteiro procura ir na sua investigação a umas boas décadas atrás, questiona a organização social destes camponeses, são escassas centenas, casamentos feitos entre gente próxima, abastecendo-se primordialmente na Lousã, com relações esporádicas com Miranda do Corvo, visitando as feiras das vilas vizinhas, caso de Poiares, Serpins ou Condeixa. A relação festiva de caráter religioso é a Senhora da Piedade. Procurando apurar as origens e população dos 9 lugares, o investigador encontrou muitas dificuldades, consta que o povoamento começou no reinado de D. Dinis, as referências escritas são bem posteriores, sofreram bastante com as invasões francesas em 1811. Como habitavam?


“As casas são feitas de xisto escuro; incluía normalmente duas lojas para gado, em baixo, e uma sala ampla em cima, com lareira baixa, onde vivia toda a família, por maior que fosse; mais tarde, sobretudo nalguns lugares, já houve divisões para a cozinha e quarto de dormir (que quase sempre continuava a ser um só); os telhados são feitos de telha canuda coberta depois com placas de ardósia negra. Nas casas sem lojas por baixo o chão é térreo. Há 60 anos eram muito raras as janelas com vidros: usavam-se só portas de pau. Não há casas de banho nem retretes. A iluminação era feita com lamparinas de azeite e candeeiros de petróleo, a luz só chegou quando já estavam abandonados os lugares. A água corre pelos caminhos ou declives do lugar, tendo sido por vezes difícil beber água limpa: no inverno por causa das enxurradas, no verão porque ela escasseava, sendo então estancada de noite para de dia ser recolhida com cântaros e filtrada por um pano de forma a ficar potável. Nos nossos 9 lugares só no fim dos anos 1950 a Câmara da Lousã começou as obras de captação das águas; e fontes só em 1970 as houve, no Candal e Casal Novo.”


Somos imiscuídos das atividades familiares, acompanhamos as culturas, o gado a pastar, a natureza da floresta, as formas de propriedade e de herança; dá-se conta dos casamentos e dos nomes, e até das alcunhas, como a Encarnação Escardoza (nome que davam ao sarampo), o António Trebolha (bicho que dá cabo das batatas e couves), o José Cartola (porque foi a Lisboa e voltou com um chapéu alto), a Conceição Taramela (porque falava muito). Vemos como eram bem duras as tarefas das regas, vamos perceber que há diferenciação profissional e social e como ela se exprime. E agora ganham vida os maços de cartas, cita-se a correspondência de quem está no Brasil, vêm os conselhos de marido para mulher; em dado momento a América tornou-se o sonho da emigração, era o chamariz da renumeração, como alguém confessa: “Fui para a América porque era dinheiro forte, era onde se ganhava mais dinheiro no tempo.” Poupava-se muito, queria-se regressar e mudar de vida, ter acesso à propriedade, mostrar publicamente o triunfo do dinheiro e de um novo estatuto; uma das recomendações do marido para a mulher era nunca emprestar sem uma letra feita por um tabelião, “quem quiser dinheiro que mo mande dizer a mim que eu é que o hei de mandar dizer que sei o que ele me custa a ganhar”. Paulo Monteiro mostra os resultados dos Censos nestes lugares em 1911 e 1940, não há mudanças drásticas.


Toda esta correspondência vai conhecer novas cambiantes com a segunda vaga migratória, de década para década reduz-se o número total dos habitantes dos 9 lugares, eram 705 em 1940, 27 em 1981, por esta altura surgem compradores vindos das cidades, nomeadamente Coimbra, querem casa secundária, inicialmente a operação é um sucesso, mas de um modo geral os filhos destes novos residentes fartam-se com a monotonia destes lazeres campestres. O autor mostra-nos como se deu o abandono de todos estes lugares, no exato dia 25 de Abril de 1974 o último homem que restava em Casal Novo, e que abandonava a sua terra de malas aviadas, chegavam as camionetas para instalar a luz.


Paulo Monteiro fala de tendências atuais (não esquecer que o seu livro é publicado 1985) quanto aos lugares deste mundo agro-pastoril onde ele vinha conhecer, depois de 1996, a presença de comunidades alternativas, designadamente de alemães. Hoje percorrem-se as aldeias serranas e a vida começa a fervilhar de outro modo, a Serra da Lousã ganha nova vida.


Muito me comoveu este trabalho de pesquisa, uma homenagem a quem labutou nas condições mais duras, emigrou, migrou ou partiu sem olhar para trás, tal a aspereza das condições de vida. Vale a pena visitar este mundo, quase um deserto em 25 de Abril de 1974, para melhor entender o abandono do mundo rural e como a sociedade de consumo subverteu o olhar sobre estas aldeias.


Mário Beja Santos


Fontes/Links:

https://maisribatejo.pt/2022/08/07/leituras-inextinguiveis-49-as-aldeias-serranas-da-serra-da-lousa/

ΦΦΦ

Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pelo seu comentário!