O Javali: um ungulado generalista
A família Suidae teve origem no Oligoceno, há pelo menos 20 milhões de anos (Ma), e em termos evolutivos, teve uma elevada taxa de sucesso, sendo atualmente composta por 17 espécies (Frantz et al. 2016). É uma família nativa do velho mundo, no entanto o javali (Sus scrofa) conseguiu expandir a sua distribuição para o continente americano, no século XV, através da sua importação para produção de carne (Graves 1984). Esta ação antrópica é considerada uma das mais antigas introduções intencionais realizadas pelo Homem. Atualmente, o javali é uma espécie cosmopolita, estando presente em todos os continentes, com exceção da Antártida (Barrios-Garcia & Ballari 2012; Figura 1.2), tendo conseguido também colonizar algumas áreas urbanas (Castillo-Contreras et al. 2018). O seu enorme sucesso devese principalmente à sua elevada capacidade adaptativa e reprodutora, quando comparadas com outras espécies europeias de ungulados (e.g. corço, Capreolus capreolus, veado, Cervus elaphus). O seu enorme potencial reprodutor está associado a três fatores: gestações relativamente curtas, tendo em conta o seu tamanho corporal (120 dias; Rosell et al. 2011), maturidade sexual precoce (♂- 10 meses (Mauget et al. 1985); ♀- entre 5-10 meses (Fonseca et al. 2010)) e um elevado número médio de crias por ninhada (4-6 crias; Tack 2018). Para além disso, a elevada capacidade adaptativa permite que a espécie seja resiliente a perturbações de variada origem, incluindo antrópica, permitindo também que esta se adapte a uma diversa panóplia de condições ambientais, conseguindo sobreviver até mesmo em climas mais extremos, nomeadamente desérticos (e.g. Adkins & Harveson 2007) ou subárticos (Baskin & Danell 2003). Adicionalmente, possui uma dieta omnívora e generalista (Herrero et al. 2006), alimentando-se maioritariamente de plantas (e.g. Cuevas et al. 2010), e oportunisticamente de outras espécies de animais (Challies 1975; Massei et al. 1996; Schley & Roper 2003), chegando mesmo a consumir alimentos de origem antrópica (e.g. ração seca deixada para colónias de gatos; Castillo-Contreras et al. 2018), também potencia o seu sucesso.
Na Europa, a população de javali tem vindo a aumentar sistematicamente, tanto em tamanho como em distribuição geográfica (Tack 2018), o que tem provocado graves danos a nível ambiental, econômico e social (Morelle et al. 2015). Este aumento populacional a nível europeu, tem levado a que algumas medidas de gestão se tenham centrado, em alguns países, num controlo mais rigoroso da espécie, incluindo o recurso à eliminação ativa de indivíduos (Massei et al. 2011). A população deste ungulado aumentou entre 1965-1975, seguida por um período de estagnação nos anos 1980s (Sáez-Royuela & Tellería 1986). No entanto, estudos posteriores (e.g. Massei et al. 2015) sugerem que as populações nunca tenham parado de crescer na maior parte dos países europeus, entre 1982-2013. Este crescimento ocorreu devido à ação sinergística de um conjunto de fatores, nomeadamente: reintroduções realizadas com o objetivo de salvaguardar a espécie de extinções locais (Leaper et al. 1999); alterações nas práticas agrícolas e aumento da extensão dos agroecossistemas (Morelle 2015), que potenciaram os recursos disponíveis; desaparecimento ou redução das populações de grandes predadores (Casas-Díaz et al. 2013; Nores et al. 2008); abandono de terras e o despovoamento em zonas rurais (e.g. Correia 1993; Otero et al. 2015), que libertaram a paisagem da presença constante do Homem; alterações climáticas (e.g. Morelle et al. 2016), pois condições climáticas adequadas favorecem a colonização e o aumento populacional; e por fim, a redução da pressão exercida pela caça (e.g. Graitson et al. 2019; Massei et al. 2015). Este aumento populacional tem provocado graves danos na agricultura (Schley et al. 2008; Labudzki & Wlazelko 1991), nomeadamente em plantações de trigo, arroz, milho, aveia, centeio, cevada, beterraba, uvas e batatas (Schley & Roper 2003), assim como nos ecossistemas florestais, através do desenraizamento de árvores mais jovens (Singer et al. 1984; Bruinderink & Hazebroek 1996).
Para além destes impactos diretos, é também reconhecido o seu papel como transmissor de doenças para o gado, nomeadamente, peste suína africana, brucelose suína, tuberculose e pseudo-raiva (Gortázar et al. 2007). Todos estes fatores, contribuem para que o conflito entre a espécie e o Homem se tenha vindo a acentuar (Carnevali et al. 2009; Glikman & Frank 2011), o que por sua vez tem implicações na forma como esta usa o espaço e o tempo.
Em Portugal, no início do século XX, existiam apenas populações residuais de javali, distribuídas maioritariamente na proximidade das fronteiras com Espanha (Lopes & Borges 2004). No final de 1960s, a espécie foi considerada como praticamente extinta, depois do aparecimento da peste suína africana e da exacerbada prática de caça (Bugalho et al. 1984). No entanto, no princípio dos anos 80, a espécie começou a evidenciar uma recuperação gradual, estando atualmente distribuída por todo o país, com exceção de alguns municípios costeiros, onde a densidade populacional humana é bastante elevada (Lopes & Borges 2004), acabando por seguir a tendência de crescimento registada no resto da Europa.
Dado que o javali é uma espécie que induz impactos negativos nas atividades humanas, associados ao crescimento excessivo das suas populações, esta expansão fez com que fosse prioritário estabelecer um compromisso entre a proteção da espécie, o controlo dos danos provocados pela mesma e a atividade cinegética – i.e., gestão sustentável das suas populações (Massei et al. 2014). De acordo com a lei que está atualmente em vigor, publicada a 21 de setembro de 1999 (Lei nº 173/99), a caça ao javali em terrenos cinegéticos não ordenados só pode ser realizada de batida e de montaria, nos meses de outubro a fevereiro. No entanto, em terrenos cinegéticos ordenados a caça pode ser permitida durante toda a época venatória, com exceção da caça de salto, de batida e de montaria (Decreto-Lei n. º 202/2004 - Diário da República n. º 194/2004, Série I-A de 2004-08-18). Em Portugal, as principais atividades de caça ao javali são as esperas noturnas (i.e., emboscadas realizadas durante ano inteiro no período de lua cheia) e as montarias (Fonseca et al. 2004). Nas montarias, realizadas geralmente durante o dia (Vajas et al. 2020), os caçadores permanecem em locais específicos (i.e., “portas") para abater os animais que são levados até eles por matilhas de cães e por batedores, envolvendo usualmente um número elevado de pessoas (caçadores, carregadores, matilheiros) e de cães de caça.
Este é o tipo de caça mais popular, e eventualmente mais intensa (Thurfjell et al. 2013), podendo ter uma taxa de sucesso maior na redução das populações de javali (Sodeikat & Pohlmeyer 2003). Este é um método bastante utilizado na Europa (e.g. Scillitani et al. 2010; Thurfjell et al. 2013; Vajas et al. 2020), ocorrendo com mais frequência nos meses de janeiro e fevereiro.
A atividade cinegética, focada neste ungulado poderá funcionar como uma ferramenta de gestão da espécie, dependendo do contexto paisagístico da região em questão, do nível populacional deste ungulado e da estratégia adotada pela atividade (e.g. foco em machos, fêmeas, sub-adultos, etc.). O controlo das populações de javali poderá ser relevante em alguns ecossistemas, impedindo que hajam desequilíbrios nas comunidades naturais, reduzindo também os conflitos entre homem-vida silvestre (Conover 2001), que poderia ter efeitos negativos nas atitudes para com outras espécies silvestres (e.g. Liu et al. 2011). Para além do impacto direto nas populações de javali, decorrente da atividade cinegética (i.e., diminuição do tamanho populacional), existem outros impactos menos evidentes, que nem sempre são considerados, mas que afetam a dinâmica populacional da espécie, nomeadamente, a alteração dos padrões espaciais (e.g. paisagem de medo; Ciuti et al. 2012) e a modificação do ritmo de atividade (Keuling et al. 2008).
O javali é uma espécie cujo padrão de atividade varia consoante a intensidade da atividade humana (Ohashi et al. 2013). Quando esta espécie se encontra em habitats sem perturbação, geralmente, tem um comportamento predominantemente diurno (Meynhardt 1989, 1990), sendo este considerado o seu comportamento natural (Briedermann 1971, 1990). No entanto, tende a alterar o seu comportamento devido às pressões antropogénicas a que está sujeita, assim como a paisagem onde se encontra.
Nestas situações, a espécie adopta, frequentemente, uma atividade maioritariamente noturna (Keuling et al. 2008; Lemel et al. 2003; McIlroy 1989), com o objetivo de evitar encontros com humanos.
Fontes/Links:
Padrões de atividade do Javali (Sus scrofa) em diferentes contextos
paisagísticos mediterrânicos (Centro de Portugal)
Cláudia Robert Magro Ramos Camarinha
Mestrado em Biologia da Conservação
https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/48048/1/ulfc126285_tm_Cl%c3%a1udia_Camarinha.pdf
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